sexta-feira, 3 de abril de 2020

Só por um cigarro





Eu fiquei com medo. Medo de andar nas ruas àquela hora. Nunca vi a Lapa daquele jeito. No 42º dia da quarentena, os serviços públicos urbanos estavam significativamente deficitários. Eram apenas oito e meia da noite, mas aquela saidinha estava me parecendo um grande pesadelo.

A Gomes Freire estava às escuras, sem as luzes de mercúrio que surgiam dos seus postes. Muito tempo já sem manutenção. Acho que andaram apedrejando ou dando tiros nas lâmpadas. De vez em quando eu escutava uns barulhos que deviam ser lâmpadas sendo estouradas.

Havia muita sujeira por toda parte, nas ruas e nas calçadas. Grupos de rua proliferaram e ocupavam espaços variados do bairro. Com o fechamento dos bares, restaurantes, boates, as calçadas deixaram de ser utilizadas para os estabelecimentos e acabaram virando território de grupos que aumentavam quanto mais crescia o desemprego com a quebradeira geral da economia.

Eu queria fumar um cigarro. Há 18 anos que não encosto um cigarro na boca. Nem um mísero trago quando estava bebendo com os amigos no Baixo. Tempos que parecem bastante distantes. Se eu soubesse o quanto beber com os amigos é uma lembrança tão boa, se soubesse como isso me faz falta, eu teria bebido por todos os dias da minha vida passada, antes da pandemia.

Conseguir um cigarro não está fácil. No nosso grupo de whatsapp, o Flávio me passou a dica de um lugar que vendia. Ali na Lavradio, numa portinha do lado do Bar do Senador. Saí do meu prédio na Francisco Muratori envolto num cobertor velho, um gorro, uma calça escura parecendo suja tentando esconder ao máximo qualquer parte do meu corpo limpo. Sair àquela hora era suicídio, porque as pessoas das ruas já estavam há dias sem comer, tentando achar restos em qualquer saco de lixo fechado. Já não se fazia doação de comida através de associações ou grupos de civis, pois alguns grupos de rua passaram a promover saques frequentes, ferindo voluntários e danificando seus carros. Apenas o Exército fazia distribuição de refeições, através de forte esquema de proteção.

Sair na Lapa de noite é certeza de ser atacado pelos grupos de rua ou alvejado pelas milícias que disputam as atividades ilícitas da região. Mas eu queria um cigarro. Eu via pela janela como as coisas estavam lá fora. Nunca imaginei passar um mês em casa sem pôr os pés na rua. Porra, quarto e sala é foda, mermão! Botei o traje de grupo de rua e fui.

A sensação era de medo. As notícias sobre as mortes eram diárias e crescentes. Todo mundo sabia o perigo de sair pra rua. Caralho, andei pela Lapa por toda minha vida e nunca tive medo. Hoje eu senti.

Eram vários os grupos de rua. E por cada um que eu passava – eu sempre andando pela rua, nunca mais pelas calçadas – eu tinha a impressão de que eles me olhavam e que me chamavam, quando eu escutava alguma fala mais forte e incisiva. Eles falavam entre eles, mas eu achava que me chamavam.

O cheiro era horroroso. Lixo, fezes, urina... de noite também havia o risco com as matilhas. Aumentou muito a quantidade de animais de rua. As pessoas passaram a abandonar seus animais, aquelas famílias que já não tinham mais nem como se alimentar, quanto mais seus animais. E cães famintos também circulavam em matilhas promovendo ataques entre eles próprios, mas também com ataques frequentes a humanos.

O Flávio falou pra procurar o Tonho na portinha de ferro da Lavradio, que ele teria o Malboro Blue Ice. Desci a Muratori, peguei a Gomes Freire e entrei na Mem de Sá. A esquina com a Lavradio tava tomada por carros de polícia, do exército e uma tropa de choque preparada para atacar grupos de rua e prender gente circulando. Nem mais fazer compras, agora é absolutamente tudo pelo delivery. Cigarros e bebidas não se encontram mais em estabelecimentos comerciais, só com as milícias locais.

Sem pensar abortei o caminho pela Mem de Sá e segui pela Gomes Freire. Só queria fumar um cigarro. Passou um entregador na sua bike escutando, sem o fonezinho, um som dos Racionais... acho que os Racionais têm a trilha perfeita para esse ambiente. Combinou pra caralho com aquilo que eu sentia. Os entregadores e os outros prestadores de serviço essenciais são os objetos de proteção da polícia. Ela tem carta branca pra atirar em qualquer um que ameace atacar prestadores de serviços essenciais. E muita gente vem sendo executada porque partem desesperadas pra cima de entregadores em busca de alguma comida.

Um cara me chamou do outro lado da rua. Dessa vez era real. Ele estava sozinho encostado no poste e não parecia ser grupo de rua. Perguntou se ele podia falar comigo. Por que esse cara do outro lado da rua quer falar comigo? Olhei pra ele pensando, mas não parei de andar. Ele pergunta de novo e eu só balanço a cabeça em movimento negativo, sem emitir qualquer som e sem diminuir o passo. Será que ele vem atrás de mim? O que esse cara é, caso não seja mesmo de grupo de rua? O que ele quer comigo?

Apertei o passo e segui por uns metros até poder olhar pra trás sem que ele pudesse me ver, caso tivesse ainda parado no lugar onde estava. Porque se estivesse atrás de mim, eu ia sair correndo.

Assim que entrei na Lavradio, reparei que tinha umas pessoas na portinha do Tonho. Resolvi esperar até que elas saíssem de lá. Então, eu fui. Bati na porta uma vez e nada. Duas. Três, e nada. Até que na quarta ele abriu. Tonho? Perguntei. O que você quer, me respondeu de forma grosseira. Eu quero um Malboro Blue Ice. Quer é o caralho, seu filho da puta! Não entendi porque ele falou assim comigo. Mas ele continuou: Tá achando que eu sou otário? E eu dizendo, do que você tá falando? Não tô entendendo... Pensa que eu não tô vendo que você tá limpo, que não é grupo de rua. Tá achando que eu sô otário? Vai tomar no seu cu, filhadaputa... e fechou a porta!

Eu fiquei parado na porta sem reação. Não acreditava no que tava acontecendo. O cara deve ter achado que eu era polícia secreta ou de alguma milícia rival – interessada em tomar o ponto. Putaqueopariu, não consegui meu cigarro.

Eu fiquei estatelado por alguns segundos em frente à porta do Tonho. Não podia desistir, eu tava decidido a comprar o meu cigarro. Peguei o celular pra passar uma mensagem pro grupo. Alguém haveria de me indicar outro lugar pela região ou alguma alternativa. Eu preciso de um cigarro.

Mandei uma mensagem pro grupo, mas fui surpreendido – assustado – por um grupo de rua que me cercou, tomando meu celular e me agredindo, momento no qual eu percebo a facada. Coloco a mão no abdômen e a vejo de imediato coberta de sangue... o meu sangue correndo entre meus dedos, eles tirando as coisas dos meus bolsos e rindo. Fui perdendo minhas forças, minha mente estava confusa, já não sabia exatamente o que estava acontecendo. Me passava na cabeça a sensação de que eu estava sonhando. Aquilo já não parecia real. Caí no chão, no meio de um círculo de homens mal vestidos que me olhavam e riam... Por que ninguém me ajudava? Por que eles estavam rindo? Eu já perdendo a consciência e aquele que segurava uma faca na mão e um cigarro na outra, puxou o último trago, encaixou o cigarro como se fosse dar um peteleco com os dedos e o lançou na minha cara. Imagina se pega na vista, eu pensei, enquanto eles viravam de costas e partiam.

Nos meus últimos suspiros, tentando entender o que estava acontecendo, sinto aquela fumaça obstruindo mais ainda a minha turva visão... um cigarro queimando. Um cigarro? Cigarro??? Consegui dar três tragos! Que puta felicidade!